sábado, 15 de junho de 2024

RACIONAL

            Nas palavras de um homem inculto, que estudou até o ensino pífio de uma quarta série de fim de mundo, o homem refletiu sobre a reação química exotérmica entre um combustível e um oxidante, que pode criar uma devastadora reação em cadeia impassível e mortal. 

            "O fogo destrói tudo", ele disse. "E não é tão simples. Não é apenas riscar um fósforo, por mais que você encha a coisa de gasolina. Não basta empilhar a madeira."

            Jogou o gato no meio do fogo, como exemplo de alguma coisa. O bicho se acendeu como um trapo encharcado em óleo queimado, por causa da pelagem longa. Era jovem demais para entender as proporções daquilo na época, além de ser a vontade de um adulto, e ficou vendo o gato se arrastando e grunhindo, sendo aniquilado. Riu sem saber do quê.

            De dentro da casa dava para ouvir os gritos da mulher chamando pelo gato naquela noite, enquanto os dois comiam. Estava frio e com o sereno ela voltou tossindo. 

            "Que estranho...", ela disse, sentando na ponta da mesa. Sem que visse, o marido piscou para o menino.

            Se interessou  pelo fogo. A história da sua dominação, indícios que remontam a mais de quatrocentos mil anos atrás. Toda a melhoria nutricional que a humanidade obteve, o calor e o conforto, a segurança contra predadores, a metalurgia e as fogueiras nos autos de fé. Quis se tornar artista performático, e até aprendeu a cuspir óleo de parafina, mas tinha medo de acender o negócio com o isqueiro - viu uma menina de 7 anos com queimaduras de terceiro grau pelo corpo e não achou bonito. Conseguiu entrar para o exército.

            A primeira vez que foi na cidade, achou que parecia um aglomerado de cupinzeiros humanos - pensava nos cupinzeiros epígeos, que ficam elevados sobre a superfície do solo - todos adaptados com extintores de incêndio, mangueiras, sprinklers automáticos, exaustores de fumaça, portas corta-fogo, saídas de emergência, escadas de emergência, iluminação de emergência…  Encarou como um desafio.

            Não carregava nada que não coubesse nos bolsos. Subiu as escadas com um garfo de alumínio, um trapo e cunhas de madeira para as portas corta-fogo. Não demorava muito para começar, os andares vazios eram os melhores para isso, de preferência os mais baixos.  

            Escorado em um muro próximo, viu os bombeiros chegando. As mangueiras de alta pressão eram o que mais odiava nós incêndios, e os bombeiros com toda aquela pressa. Mas quando ouviu o depoimento do chefe dos bombeiros no rádio, descrevendo os detalhes do ponto de ignição do incêndio com sua voz apatetada, as mortes e a situação dos feridos, começou a rir.

            A mulher estava sentada  de pernas abertas em um cepo de lenha, distraída com o nada, com um cigarro no meio dos dedos, voltada para mudas de pinheiro-escocês recém plantadas. Seu homem havia sumido no mundo há muito tempo, e ela nunca soube que fim teve aquele gato.

            - Do que você ri? - ela perguntou, mal conseguindo virar seu pescoço roliço. Mas ele ainda pensava.


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