terça-feira, 14 de maio de 2024

TARDÍGRADOS

           A chuva tamborilava na janela por dias e escorria pelas frestas das tábuas enrugadas. A televisão e o rádio culpavam ventos tropicais no Pacífico. Mas enquanto bueiros transbordavam, carros se tornavam barcos a deriva e a casa parecia ceder aos poucos, médicos continuavam trabalhando, sob uma luz oscilante.

           Uma manta colorida cobria o paciente como uma espécie de mortália debochada, contratando com seu semblante insipido. Tinha poucos fios de cabelo cinza amarelado bagunçados e os olhos afundados no rosto. Os esforços médicos no seu caso estavam sendo baseados no princípio da beneficência, não havia possibilidade de se salvar. Quando os curativos foram retirados, larvas opulentas e cor de pus foram expostas sobre a ferida vermelha-rosada. Estavam muito diferentes dos pequeninos grãos de arroz higienizados que foram depositadas no começo daquele dia. A gordura que secretavam ao se alimentar, refletia a luz do quarto. 

            "Interessantíssimo!", disse o médico número 2, enquanto uma família sortuda de baratas do esgoto aproveitava a situação para sair de um buraco no assoalho e correr despercebidas pela beira da parede. "Lucilia sericata. De minha própria criação, com uma dieta baseada em peptídeos."

            "Sempre que pensava em larvas imaginava ovos de moscas varejeiras eclodindo em feridas de cadáveres, e se alimentando dos restos", disse o médico número 1. "Quando falei sobre o tratamento bio-larval para minha mulher, ela quase vomitou na cabeça do nosso filho."

             "Mulheres são mais sensíveis, por isso somos maioria nessa profissão, cerca de 79%", disse o médico número 2. "Você devia ter explicado que esse método é tão antigo quanto a escrita, que aborígenes e maias faziam esse tratamento."

            O médico número 2 havia encontrado um  livro de biologia do quinto ano, misturado a uma pilha de revistas empilhadas debaixo da velha máquina de costura.

            Cobrindo os lábios com os dedos o médico número 1 comparou o tamanho das larvas com o pênis do paciente. "Tem certeza de que comeram apenas o que estava morto?", ele perguntou. 

            "Elas só comem a parte necrosada, não são invasivas. Fazem a reciclagem de nutrientes, ingerindo o tecido morto e defecando propriedades curativas no ferida", explicou seu colega.

            Ele começou a retirar as larvas e depositar em uma pequena lancheira de plástico. O cheiro no ar ficou agridoce, com uma nota suave de putrefação. Um gorfada cor-de-rosa, consequência do Nesquik que havia bebido mais cedo com o resto do leite, foi expelida pelo médico número 1 sobre as pernas finas do paciente e escorreu até o colchão.

            Um grito áspero de fora do quarto quase o fez pular da pele:

            "O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO AÍ?"

            Depois de um instante de silêncio, o médico número 2 respondeu:

            "Brincando."

            "Deixe o seu avô quieto! Me ouviu!?", disse a voz.

            Desistindo de se levantar da cadeira, a mulher apagou seu cigarro no cinzeiro de cerâmica sobre a mesa da cozinha. A água marrom começava a entrar pela soleira da porta, e as luzes se apagaram nesse instante.

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