quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

DEVIA SER MEIA-NOITE

            Passar a noite ao relento estava fora de questão. Não depois de encontrar aquele ninho de caranguejeiras quando foi mijar. Tentou a sorte em uma estradinha à beira da rodovia e acabou descobrindo uma vila de trapeiros, com choupanas feitas de uma variedade de lixo, sendo as mais elegantes cobertas por lonas. Mas não tinha como pedir abrigo naqueles lugares apertados, que já abrigavam meia dúzia de pessoas cada... 

            Sentiu-se com um pouco de sorte quando encontrou uma construção de tijolos mais afastada, perto de montes de lixo separados. Estava lá muito antes dos trapeiros, parecia ser o que sobrara de uma casa antiga. Era pouco maior que uma latrina, e a única coisa ali com porta de verdade. Quando todos se recolheram, testou a porta e deu sorte que ela cedeu no primeiro pontapé.

           Não podia esticar as pernas, mas estava protegido das aranhas. Haviam cascas secas de milho, que amontoou em um canto e fez de travesseiro. Por sorte, ainda tinha 1/4 da garrafa para deixar aquele apertume escuro mais confortável.

            Não tinha como saber as horas da noite, quando um bando de cachorros começou a perseguir algo do lado de fora. Puxou sua lâmina do bolso e pensou em sair para espantá-los, quando uma voz na sua consciência gritou "NÃO", e ele obedeceu.

            O alvoroço continuou, diminuindo um pouco e voltando ao ápice logo em seguida. A noite inteira os cachorros pareciam correr em círculos ao redor do abrigo. Eram latidos incansáveis de ódio selvagem. Com a garrafa vazia, ele começou a ralhar com os cachorros. 

            "SE FOR GORDO, ME DEIXA UM PEDAÇO", gritou, sentindo um gosto azedo, que lembrou o remédio que sua mãe lhe davam para não incomodar com a polícia.

           Uma pancada violenta na porta clareou sua mente alcoolizada para o fato de não haver tranca nenhuma naquele lugar, nem nada que pudesse impedir o que quisesse entrar. Começou a ter palpitações e falta de ar, encolhido de olhos arregalados. Segurou sua lâmina com as duas mãos e forçou a porta com os pés. Começou a latir junto com os cachorros. 

            A perseguição foi cessando aos poucos, e horas antes do amanhecer já havia terminado. Ainda sim, não se sentiu tão aliviado de abandonar sua posição. Foi uma eternidade até ouvir o primeiro galo cantar. Esperou pela movimentação dos trapeiros. Seu olhar dilatado, o peso nos ombros e a tremedeira eram reflexos da noite em claro. 

           Quando abriu a porta, encontrou algo na entrada. Era um osso longo e cinzento, com um pouco de carne marrom grudada. O fedor acre e amoníaco fez com que vomitasse nos próprios pés. 

            Não queria ter toda aquela certeza, mas conhecia nossa anatomia. Aquilo era um fêmur humano.


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