quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

FAZENDO MÁGICA

             Talvez a única coisa que tenha aprendido de verdade com o pai, um homem cego, que vinha sendo podado ao longo dos anos por causa da diabetes, era que a gente se acostuma com as coisas. Era o que tentava fazer com a namorada. Porque a beleza não é tudo, ele repetia a si mesmo, por mais que sua namorada nunca tenha tido uma grande personalidade.

            Mas naquela tarde, depois de acordar do coma, para sua surpresa, toda a bagunça estava desfeita. Os olhos amassados, a fenda no rosto e o buraco espumoso que passou a ser sua boca, mantida fechada por um elástico, pareciam um pesadelo do passado. Não conseguia entender como aquilo era possível. Sentada ao seu lado, a adolescente estava com um rosto intacto, como se nada tivesse acontecido.

            Aos poucos, conforme a adolescente falava, a memória do rapaz foi voltando. Começou lembrando do amigo parado sob o marco da porta, segurando um saco com algo se debatendo dentro e dizendo:

            "Como você consegue ficar encarando aquela coisa, cara?!"

            O amigo se referia ao rosto da menina sentada na cama. 

            Cansada da vida, ela havia enfiado o cano de um arma na boca e puxado o gatilho, sem esperar nada além da morte. Mas acabou colocando o cano muito inclinado e errou o cérebro, terminando sem rosto.

            É difícil explicar a vontade de viver que nasce nas pessoas após uma tentativa de suicídio malsucedida. Para ajudar, seu namorado costumava aprender truques de mágica e praticar com ela, para a vê-la sorrir do seu novo jeito. Era o que estava fazendo quando o amigo chegou.

            O amigo disse que tinha um gato no saco. O animal havia ficado violentíssimo depois da castração, e por isso não era mais estimado. Queria companhia para abandoná-lo na beira da estrada. A moça não gostou muito da ideia, não gostava do sujeito. Mas não queria acabar com a animação do namorado, que por ordens do psiquiatra não podia deixá-la sozinha.

            Seu namorado certificou-se de que ela estava bem presa ao cinto de segurança. Enquanto isso, o motorista olhava pelo retrovisor com um sorriso, que a garota disse ter percebido. Confessou que achou obsceno o brilho naqueles olhos, que pareciam de alguém que um dia apareceria no telejornal depois de acabar preso por estupro e assassinato de 72 meninas

            O casal viajava de mãos dadas, em silêncio no banco de trás. O frescor do dia entrava pela janela e era prazeroso. Nesse momento a moça pensou que aquele talvez não fosse ser um passeio tão ruim, afinal.

            As coisas começaram a fugir do controle depois que entraram em uma estrada paralela. Quando esse amigo tirou o saco com o gato para fora da janela e começou a girá-lo no ar, à medida que acelerava cada vez mais. Ele batia o saco na lataria, e era possível ouvir os grunhidos que saíam lá de dentro. Até que a coisa acabou se rasgando e algo peluda se soltou lá de dentro e escalou pelo seu braço até sua cabeça.

            Era muito engraçada aquela trapalhada. Uma secreção amarelada escorria do nariz da garota a medida que ela ria. Até o motorista erguer o braço e todos verem que ele estava sem a mão direita. 

            Preso a imagem do osso saindo da carne, o rapaz abandonou suas responsabilidades no volante. Quando perceberam, estavam descendo uma ribanceira.

            Na cama de hospital, o rapaz começou a lembrar de ter acordado em algum momento entre os bancos da frente e ver o amigo com o rosto enfiado no painel de instrumentos. Tentou espiar o banco de trás para ver como a namorada estava, mas não a encontrou. No hospital, ela garantiu que se salvou graças ao cinto de segurança.

            A namorada revelou que o que havia no saco não era na verdade um gato, mas uma espécie mágica, chamado Sludgebelch. 

             Seu namorado pediu que ela repetisse de novo, com medo de que ainda estivesse confuso por causa das fraturas cranianas. Para o seu encanto, a moça repetiu a história sem nem piscar.

            A pequena criatura de nariz grande e orelhas pontudas, coberta de pelos crespos e azulados, havia sido raptada com um truque sujo aprendido na internet. O tipo de coisa que quase ninguém levaria a sério a ponto de fazer. Depois de passarem um tempo esperando a emergência, Sludgebelch disse a ela que mesmo não sendo das criaturas mágicas mais poderosas, concederia um desejo a ela, se lhe fosse possível.

            Estava na cara que o pedido da namorada havia sido um rosto novo. Mas não era exatamente novo, ela explicou.

            Passando os dedos, o rapaz percebeu a linha fina, quase invisível que circulava o rosto, com uma leve mudança de tonalidade. Parando próximo ao ângulo da mandíbula, reconheceu o pedaço do caractere chinês da tatuagem do amigo. Em seguida reconheceu os olhos castanhos. 

            A felicidade por ter ganho um rosto foi tanta, que ela queria fazer algo por Sludgebelch. 

            A criatura disse que o que mais queria era seus testículos de volta. Respondeu a ele que arranjar um par de testículos não seria possível. Então, entraram em comum acordo de que seria apenas um testículo que ela lhe conseguiria.

            A namorada prendeu a densa cabeleira de fios pretos, grossos como linha de sapato, e tirou uma tesoura de costura do bolso do casaco. Garantiu que o namorado não precisava se preocupar, porque já estavam em um hospital. 

            O rapaz percebeu que estava sem nada por baixo quando sentiu a ponta da tesoura tocar seu escroto. Ia gritar por socorro, mas a moça foi mais rápida e enfiou o punho em sua boca.

            A namorada disse que depois poderiam praticar truques de mágica. E então cortou.

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